Presente de Velha

Suely Tonarque

Presente de Velha

Suely Tonarque (*)

Em “Meia-noite em Paris” (2011), Woody Allen nos remete à passagem do tempo e o jeito como nós lidamos com ele. O tempo, devagar, esse adversário se configura como o enfrentamento da nossa existência: a finitude.

Nesse filme, além de apresentar um figurino do ano de 1920 de estilo Charleston, contrastando com o ano de 2010 – cores fluorescentes, calças estreitas coladas às pernas, Allen nos propõe um desafio permanente: o de refletir sobre as questões da importância do presente e a riqueza do tempo que vamos “perdendo” a cada dia.

Rugas

Marcas do tempo, estigmas e cicatrizes. Levo no meu rosto as tristezas e as alegrias que vivi. (Suely Tonarque).

Neste ano de 2024 fui convidada para três festas de aniversário das mães de amigas: Lilian (98 anos), Jacira (98 anos) e Conceição (100 anos) – todas no mês de junho. Saio à procura dos presentes e reflito que não vou dar penhoar, camisola, chinelo, manta, cachecol, touca de banho, gorro para frio, bengala, caneca de leite, de chá, meia de dormir, calça tipo fralda, véu para missa (preto), vasinho de flores…

No final, não encontro nada; e, quando penso que encontrei, o preço é caro para 3 presentes. Então, vou à Livraria da Vila e como conheço um pouco de cada aniversariante, escolho livros – “Fio das missangas” (Mia Couto), “Antes do Baile Verde” (Lígia Fagundes Teles), “A Casa dos Espíritos” (Isabel Allende).

Pronto! Resolvo e sei que elas gostam de ler e, a cada semana, parto para as comemorações…

A cada semana, após o aniversário, minhas amigas ligam e comentam sobre os presentes: “Minha mãe ganhou 5 mantas, 2 cobertores, 4 chinelos e muitas, mas muitas calcinhas de dormir (geriátricas). Nada de vestido, saia, blusa, necessaire para viagem; e nenhum batom, perfume, zero creme cheiroso pós-banho ou, convite para ir ao cinema: isso, nem pensar!”.

Fico passada e tresloucada ao constatar como as velhas são tratadas nesse mundo de invisibilidade “categoria Velha”. O que somos? Velhas sim. Cadê a nossa individualidade, nossa singularidade, nossa cidadania? Sim, porque como cidadã viva tenho sonhos, desejos e projetos. Afinal, caminhamos todos juntos, ou não?

Mas, esses presentes recebidos corroboram com a imagem pela qual somos reconhecidas na sociedade.

Imagem no espelho

Percorrendo o caminho da vida, chego à velhice. Ficou assustada e embaraçada ao olhar no espelho: não me reconheço! Vejo outra imagem, desconhecida, e me afasto porque vem a nostalgia da juventude, da beleza perdida com saberes e sabores da minha rica vida vivida – é a minha velhice.

(*) Suely Tonarque é psicóloga, gerontóloga e especialista em moda no envelhecer

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