A flanela que nos aquece

Suely Tonarque

Minha amiga Marcela contou-me sua história. Falávamos dos tecidos de nossas roupasm, que eram bem diferentes. Há pouco tempo ela se mudou para São Paulo, era do Sul de Santa Catarina. Marcela conta que era uma região muito fria: – Nunca vi meu pai de camisas de mangas curtas, e além disso eram todas feitas de flanela. Minha mãe costumava dizer que era de tecido flanelado, mas hoje eu diria que era de flanela mesmo. Muitas vezes usava uma camisa, um blusão xadrez (como se usa hoje em dia), era um homem magro e isso o deixava bastante elegante. Mesmo com paletós, capas, moletons, ele usava uma camisa de flanela como primeira pele, e dizia que lhe trazia muito conforto, – Esquenta para valer!!!!, falava.

O homem primitivo tinha de se proteger das intempéries, dos animais selvagens, dos muitos perigos existentes e … do frio. O couro e o pelo dos animais foram levando o homem a cozer seus agasalhos, capas, coberturas do local onde dormir, forrar a moradia, até produzir a lã e tecidos quentes. Testemunhos de pessoas que sofreram muito frio (congelaram, mas não morreram) noticiam como é dolorida a dor do frio. Em muitas experiências, foi o aconchego do corpo do seu semelhante que permitiu ao animal humano sobreviver.

No filme Ironweed, do diretor latino Hector Babenco, dois mendigos de rua (Jack Nicholson e Meryl Streep) sobrevivem ao inverno um apoiando o outro, como a flor que dá nome à película. Nos dias atuais, em um filme candidato ao Oscar, Ataque dos Cães (da diretora Jane Campion), o protagonista revela que o homem que lhe ensinou tudo o que ele sabia para cuidar de gado (era um fazendeiro) também o salvara em um inverno rigoroso, protegendo-o nu, em seus braços (aqui são várias salvações, inclusive orientação sexual).

Dos tecidos quentes, vale a pena destacar a flanela, tecido muito usado pelas pessoas não tão favorecidas, de baixo custo, mas que esquenta nossos corpos nas noites frias, principalmente os recém-nascidos, que dormem “quentinhos” embrulhados em lençóis e colchas de flanela.

 A Flanela como tecido

Macio, variável de espessura, o tecido de flanela é usado para a confecção de lençóis de cama, vestuários, toalhas e roupas para dormir. Sua composição no passado era feita de lã cordada, que é o processo pelo qual fileiras de lã, ou de algodão, são separadas e preparadas para a fração. Isto pode ser feito manualmente ou, como se faz na atualidade, através de máquinas especializadas.

Neste período da pandemia (que ainda estamos), retomamos às nossas casas, entramos em contato com o nosso teto, a casa concreta, que nos dá proteção da chuva, do sol; que nos dá o descanso, os encontros familiares; muitas vezes também é aí que se dão tristes desencontros. Como é gostoso chegar em casa, depois de um dia de trabalho intenso, tomar um banho, vestir o pijama de flanela. Tomar uma sopa e descansar, ou acordar com a camisola de flanela e lembrar o sonho que teve e tentar decifrá-lo, para chegar um pouco mais próxima da alma e compreender nossas escolhas, nossos caminhos, poder ir e também voltar e optar por outra camisola de outra cor.

Ao sair do mundo do trabalho, sentir de fato que a nossa casa concreta nos acolhe é muito bom. A nossa “casa” interior em um primeiro momento assusta e traz uma sensação de perda. Aos poucos, vai se conhecendo e reconhecendo os seu lugares: quantas mudanças: quantas novidades, quantas adaptações e o começar se faz necessário.

Neste período de pandemia surgiram compulsivamente as lives diárias. Tivemos de aprender uma nova forma de comunicação para ficar mais próximos e conhecer o mundo virtual.  Em uma das lives, o que chamou muito minha atenção foi a presença do cantor Caetano Veloso, elegantemente vestido, com vários modelos da sua coleção de pijamas tecidos em cores diversas, com detalhes nos punhos e no bolso, variando com   seda, algodão malha e flanela.

Dormir de camisola de flanela, ouvindo Caetano é sentir-se  embalada nos braços de Morfeu – um sono profundo com bons sonhos. De acordo com a mitologia grega, Morfeu era um dos filhos de Hipnos, o deus do sono e representava a personificação dos sonhos.

No samba enredo (1978) Sonhando nos braços de Morfeu (Mocidade Alegre), a letra traz:

Evoco a Lua,

Para levar-me aos braços de Morfeu

Quero sonhar e me perder no mundo da ilusão,

É na entrada do reino.

Despindo-se à beira de um paranã

Que a flanela nos agasalhe, e aproxime nós todos dos nossos sonhos e desejos. Amém para a humanidade.

(*) Suely Tonarque é psicóloga, gerontóloga, integrante do Grupo de Reflexões do Ideac e especialista em moda no envelhecer

Post by: https://ideac.com.br/a-flanela-que-nos-aquece/

COMPARTILHE