Distraimento no envelhecer das maravilhas
Vou me permitir aventurar-me nas oportunidades que surgem, mesmo não sendo o que esperava…
Acabei de reler “Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. Alice se lança nos desafios das surpresas; e eu – do grupo das 60, 70 e 80+ – vou me lançar nos desafios de novos projetos. Às vezes (ou na maioria das vezes), não me permito ficar distraída e o querer fica difícil de ser concretizado.
Pensando nisso, de imediato, mergulhei no vasto mundo de Clarice Lispector ao me conectar com a sua crônica “Por não estarem distraídos” (publicado no livro “Para não esquecer”, lançado um ano após a sua morte, em 1978):
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto, ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbitos exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Sim, quero ficar mais distraída! Sair das minhas imersões e perceber a boniteza das pequenas coisas que me cercam no cotidiano. E aí volto à Alice e foco em seus personagens em busca de respostas…
- Distraída, Alice entrou no mundo das maravilhas atrás do Coelho Branco e resolveu segui-lo, sem refletir… Nós, velhas, ainda temos coragem de fazer “loucuras” sem consequências???
- Com o Gato de Cheshire (Risonho), Alice aprende, com o passar do tempo, a conviver com os absurdos dos acontecimentos. Nós, velhas, será que já aprendemos a conviver com a invasão da tecnologia (responder e-mail, curtir no insta, manusear os apps etc. – e, principalmente, a não cair em golpes?!?
- O Chapeleiro Maluco, criativo e inovador, nos incentiva a sermos nós mesmas – hoje criamos novas formas de nos vestir; percebemos que o nosso corpo vai se transformando à medida do envelhecimento!!! E a nossa aparência, como está? Eu me aceito velha?
- O Lagarto: representa para Alice seguir os melhores caminhos. E, para nós, qual é o melhor caminho? Temos um lagarto por perto? Ou, em nossos sonhos, surge uma orientação? Somos lagartos com os nossos amigos? Conseguimos (nos permitimos) nos transformar em borboleta? Quem somos nós, nesse processo do envelhecer?
- A Rainha de Copas – amorosa, atenciosa, dedicada e protetora. Ela nos convida a abraçar os amigos, acreditar num mundo encantado com o afeto dos encontros.
- O Arganaz (rato do campo) – cai de sono o tempo todo. Estamos cansadas do trabalho, exauridas… Vou me permitir descansar, dormir, dançar e ir ao cinema, sou aposentada e amo ir ao cinema da tarde!
Os personagens, em alguns momentos (poucos ou muitos) residem em nós. Alice é uma garota cheia de coragem para o novo. Nós somos velhas, idosas, 3ª idade, sêniores… em busca daquele(s) desejo(s) que ainda não aconteceram; somos movidas pelas aspirações de viver com saúde e alegrias. Mas, quando o mundo está muito complicado à nossa volta, não nos permitirmos o distraimento…
(*) Suely Tonarque é psicóloga, gerontóloga e especialista em moda no envelhecer