O Alimento Nosso de Cada Dia!

Suely Tonarque

O leite materno é o nosso primeiro alimento, é a fonte principal de nutrição dos recém-nascidos. Sua primeira versão, o colostro, é rico em proteínas, anticorpos, vitaminas, lactose e sais minerais. Tudo o que o bebê precisa para sobreviver e crescer.

Na adolescência, é a alimentação saudável que garante o desenvolvimento do corpo para sua fase adulta e a prevenção de doenças. Já na maturidade, para manter nossa saúde e energia, devemos investir no consumo de frutas, hortaliças, grãos integrais, nozes, peixes. A ingestão de carnes vermelhas deve ser limitada.

Na velhice (podemos chamar também de terceira idade) dê preferência aos alimentos naturais, às fibras, proteínas, ao ômega 3. Substitua o sal por outros temperos e beba muita água, evitando bebidas adoçadas.

O alimento também é fonte de crescimento da amorosidade, desenvolvimento, energia e pulsão de vida. É fundamental para nossa existência, tal qual o alimento afetivo, o encantamento, a necessidade da ternura e do carinho que recebemos desde o nascimento de nossos pais biológicos, pais substitutos, tutores.

Vamos construindo através dos relacionamentos amorosos a nossa memória afetiva, o nosso estar no mundo e como transitar nele. As relações mais significativas ficam marcadas no nosso psiquismo, na nossa alma, na nossa rica e acolhedora memória. Estão lá guardadas e carimbadas as experiências de amor simbolizadas na concretude pela comida – arroz, feijão, abóbora, cenoura, bifes, purê de batatas etc.

Lembro do filme dinamarquês “A Festa de Babette” (1987), do diretor Gabriel Alves, baseado em um texto homônimo da escritora dinamarquesa Karen Blixen, e que recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro.

O filme é realmente uma festa para o espectador, uma obra de arte. Babette (Stéphan Audran) é uma parisiense que se oferece para ser cozinheira e faxineira da família em uma remota aldeia dinamarquesa, dominada por uma tradição puritana, onde vivem duas irmãs solteiras que recordam com nostalgia a juventude.

A chegada de Babette de Paris, fugindo do terror, mudará as suas vidas. A recém-chegada é acolhida como empregada e, anos depois, terá a oportunidade de corresponder à bondade e ao calor humano com que foi recebida, organizando uma opulenta festa com os melhores pratos e vinhos da gastronomia francesa.

Celebrar a gastronomia mostra que a comida, criadora de memórias olfativas, visuais e gustativas, nos transporta para outros locais, outras paisagens, outros vilarejos, outras vidas que possuem significados nas nossas lembranças. Enfim, nos faz pensar na riqueza da nossa existência.

Falando em comida, também tenho nas minhas lembranças o cuidado com que meu pai (Albertino Tonarque – 1925/ 1999) recebia seus irmãos e irmãs, quando viajavam para São Paulo, para cuidar da saúde. Fazia com muito empenho uma “Sopa de Mocotó” e oferecia para seus parentes tomarem duas vezes ao dia. Como esta sopa possuía ingredientes saudáveis de verdade, as pessoas iam adquirindo alegria e vontade de viver cada vez mais. Meu pai ficava todo pomposo quando elogiavam o “Mocotó do Albertino”

Resolvi compartilhar com vocês a receita desta sopa:

No açougue você pode pedir pé de boi, que tem mais tutano que o de vaca, e solicitar que corte em vários pedaços. Coloque esses pedaços para ferver, algumas vezes, para eliminar o cheiro forte que eles têm (por volta de 4 vezes).

Já sem o cheiro forte, refogue na panela de pressão, alho e cebola triturados, adicionando pimentão cortado e tomates sem pele junto ao mocotó. Tempere a gosto com sal, feche a panela de pressão e deixe no fogo médio de 50 a 60 minutos. Depois, desligue e coloque em outra panela bonita, para servir em quente.

Essa sopa é salgada, mas você pode cozinhar da mesma forma os pedaços de pé para fazer um doce. Depois de muito fervido, coe, deixando o líquido e colocando a mesma quantidade de leite e açúcar a seu gosto. Deixe ferver até diminuir bastante (ele fica mais grosso). Fora do fogo, bater até ficar com consistência de geleia. Temos aqui a famosa “Geleia de Mocotó”, que os antigos diziam que levantava doentes da cama.

Tenho, ainda, outra receita de sopa, também da autoria do meu pai Albertino, mas bem mais simples:

Coloque meio quilo de pedaços de mocotó, por meia hora, com a metade de um limão espremido. Use como temperos: um punhado de orégano, semente de coentro e sal. Cozinhe por duas horas na panela de pressão, depois tire os ossos e sirva apenas o caldo morno/quente.

Escrevo essas minhas experiências porque estão vivas na minha memória e faço uma conexão do alimento com as atitudes de ternura que recebemos daqueles que nos amam. Albertino, quando percebia que os filhos iam ficar doentes, já se preparava para cuidar através da alimentação. Com isso demonstrava e fazia a sua declaração de amor e generosidade aos que lhes eram próximos.

Sugiro filmes que falam de amor e gastronomia: “Alimento da Alma” (1997); “Chocolate” (2000); “O Tempero da Vida” (2003);

“Ratatouille” (2007). Claro que existem outros a descobrir.

A gastronomia também é consagrada pela música, como em “Feijoada completa”, de Chico Buarque, que cita feijão, linguiça, torresmo, couve, laranja, arroz branco, farofa, pimenta, paio, carne seca, toucinho. Colocar água no feijão, refogar e engrossar os ingredientes, que estão entrelaçados ao encontro com sorriso nos lábios e afeto no olhar. O ato de alimentar é uma brecha para nos ver e nos abraçar. Esse é o alimento que se nos falta, ficamos doentes.

E tem outras lindas: “Já foi a Bahia” (Dorival Caymmi); “Farinha” (Djavan); “Não é proibido” (Mart´nalia) e “Morena Tropicana” (Alceu Valença).

Entre outras e outras letras musicais vamos nos conectando aos alimentos que necessitamos para viver com leveza, amorosidade, encantando o cotidiano.

O alimento é muito semelhante ao amor, a nossa fome termina quando é preenchida pela presença da comida. Clarice Lispector escreve que “saudade é um pouco como a fome, só passa quando está presente”(Clarice Lispector/ crônicas no Jornal do Brasil, de 1967 até 1973-“ A descoberta do mundo”. E você, tem fome de que?

(*) Suely Tonarque é psicóloga, gerontóloga e especialista em moda no envelhecer. Faz parte do Grupo de Reflexões do Ideac

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